A mulher estranha há dias não saía do quarto. Não que isso preocupasse os outros moradores da pensão barata, da pensão suja e barata, da pensão suja de barata. Mas eles também eram sujos e baratos e notaram, já que há dias não podiam sair de casa, que há dias a mulher estranha não saía do quarto.
A mulher estranha há dias não saía do quarto, porque há dias não sentia-se viva. Há dias, a mulher estranha sentia nos seios o peso de ser mulher e a realidade de ser estranha. O peito petrificado com tanta solidão, deixava a mulher estranha presa na cama.
A mulher estranha há dias não saía da cama. O lençol comido por traças, traçava as pernas da mulher. As manchas de choro e babas sujas de fome, formavam um mosáico triste, formavam o retrato mais bonito da mulher estranha, que há dias não saía da cama, que há dias não saía do quarto.
A mulher estranha, que há dias não saía da cama, que há dias não saía do quarto, era estranha porque gostava do amor, a mulher estranha além de gostar do amor, ainda acreditava nele. A mulher era estranha porque ninguém mais, além dela, gostava do amor, e o que deixava a mulher ainda mais estranha é que ninguém acreditava no amor, além dela.
A mulher estranha, que há dias não saía da cama, que há dias não saía do quarto, além de gostar do amor e acreditar nele, sofria por amor e por isso há dias não saía da cama, há dias não saía do quarto, há dias não sentia-se viva, e há dias não chorava mais.
As manchas do lençol, comido por traças, que traçava as pernas da mulher estranha, que há dias não saía da cama, que há dias não saía do quarto, que gostava do amor, acreditava no amor e sofria por ele, secaram.
A enchente que esperávamos, cresceu mais do que o pó na porta da mulher estranha, que há dias não saía do quarto, e continuávamos ouvindo, através do rádio, que não podíamos sair de casa. E assim, outros percebiam que a mulher estranha há dias não saía do quarto, mas não sabiam que há dias a mulher estranha não saía da cama, que as manchas do lençol, comido por traças, que traçavam as pernas da mulher, haviam secado. Não sabiam que a mulher estranha que gostava do amor e acreditava no amor, sofria por ele e que por isso há dias não saía do quarto, e há dias não chorava mais.
A enchente desceu e só deixou o pó na porta da mulher estranha, que há dias não saía do quarto. Através do rádio, nos diziam que podíamos sair de casa. O sol começou a quebrar a parede de chuva que havia cercado o céu. A mulher estranha continuou traçada pelo lençol comido por traças, com manchas secas.
Mas ninguém mais percebeu que há dias a mulher estranha não saía do quarto, e não sabiam que há dias ela não saía da cama. Nunca ninguém soube que a mulher estranha, que era estranha porque gostava e acreditava, estava sofrendo por amor, e que há dias não chorava mais.
A mulher estranha há anos não saía do quarto, há anos não saía da cama. O lençol foi completamente comido por traças e não traçava mais a perna da mulher. Os seios da mulher petrificaram tanto que viraram pó e o vento do outono limpou o pó da porta e o pó dos seios da mulher estranha que há anos não saía do quarto, que há anos não saía da cama, e que gostava do amor, e além disso, acreditava no amor.
E mesmo sem mancha, sem pó e sem chuva, a mulher estranha, que há anos não saía do quarto, que há anos não saía da cama, que há anos não era notada, que há anos não sentia-se viva, que há anos não conseguia chorar, ainda sofria por ele. A mulher estranha ainda sofria por amor.
A ela, a mulher estranha, deixo minha compaixão.