quarta-feira, 28 de maio de 2008

A FILHA PRETA


Abriu os olhos na hora errada: 04:15 am. A cortina do quarto sempre meio aberta, permitia a luz de fora, talvez da lua ou a luz do poste. A única coisa que mexia era os olhos, que piscavam, observavam o quarto meio-iluminado.

Procurou a filha, uma gatinha preta de pelos curtos, entre o cobertor e as pernas. Ela dormia, como sempre, encolhida, em forma de bolinha. Quando a filha preta sentiu a observação da mãe espiou com seus olhinhos, amarelos a noite, verdes de dia, e voltou a dormir.

"Ainda bem que te tenho" Pensou a mãe que sentia-se vazia. "Ainda bem que estás aqui" Pensou em seguida, a mãe, que sentia-se abandonada. "Ainda bem que me entendes" Pensou a mãe, que sentia-se incompreendida. "Ainda bem que dormes" Pensou a mãe, culpada por ter acordado na hora errada. "Ainda bem que sentes" Pensou a mãe, ao lembrar da espiada da filha. "Ainda bem que me amas" Pensou a mãe ao querer chorar.

Então, a mãe tirou a filha preta do meio das pernas e colocou ao lado do travesseiro. Cobriu o corpinho peludo, ralo e preto, e sentou na cama com as costas apoiadas na parede. Pegou um cigarro, abriu a janela ao lado da cama, acendeu o cigarro, olhou pela janela, ao lado da cama, fumou e observou a fumaça enquanto se culpava, enquanto se espremia.

"Não gosto de ouvir o cigarro queimar" Pensava enquanto ouvia o cigarro queimar. "Me deixa vazia" Pensava enquanto sentia-se vazia. "É sinal de silêncio" Pensava enquanto percebia o silêncio distante, agressivo. "Não gosto de acordar na hora errada" Pensava enquanto lembrava de todas as noites anteriores àquela em que acordara na hora errada.

Jogou a bituca do cigarro pela janela. Olhou para o céu, escuro, sem lua (era a luz do poste), vazio. Fechou a janela, ao lado da cama, e deitou novamente, ao lado da filha. Estava com as mãos e os braços gelados.

Se enrolou no cobertor e abraçou a filha preta, que dormia, talvez sonhava. Fechou os olhos enquanto sentia na boca o gosto do cigarro. "Melhor que esse amargo, por ter acordado na hora errada" Pensava enquanto assoprava da boca o gosto do fumo. "Pelo menos te tenho filha" Pensava enquanto tentava dormir novamente. "Pelo menos posso me esquentar em ti" Pensava enquanto sentia o contraste das mãos e dos braços gelados no corpinho peludo e quente da filha.

Sentiu no rosto o narizinho úmido, da filha preta, já era a hora certa. Abriu os olhos. Com a cortina meio-aberta, percebeu o dia. Agora sim era a hora certa. Abraçou a filha preta, abriu a janela, ao lado da cama, olhou para o céu, viu a luz do sol, levantou e partiu.

3 comentários:

Juliana disse...

que lindo.. o triste bonito.
a janela me é um refúgio nas madrugadas de insonia, porém o que vejo fora são apenas escuridão e se não estrelas e quando tem lua, a lua.
me dá vontade de fumar, então fumo um cigarro imaginário já que não tenho o palpável.
as vezes supre, mas não tenho a filha.
tinha pelúcias, mas a respiração de vida é ainda melhor.

beijo.
juliana.

gregory haertel disse...

a hora certa era a hora da madrugada mesmo, né? como ela poderia ter pensado todas aquelas coisas lindas se não tivesse acordado antes da hora?
lindo, aninha.
beijo

Anônimo disse...

oxxi Aninha,uma linguagem simples e sensivel!
um bju e vou acompanhando por aqui!
se cuida!
Nane.